sábado, maio 31

Paulo no contexto das origens cristãs


As opiniões acerca de Paulo, distribuem-se por campos opostos.
Sentido favorável:
Um herético ibérico do séc. VII qualificou-o como encarnação do Espírito Santo
13º Apóstolo
Primeiro depois do único
Enfant Terrible das origens cristãs
Garante da liberdade de pensamento na Igreja
Fundador do universalismo
Inventor do cristianismo
«Jamais veio ao mundo, alguma coisa tão audaz» - Lutero
Desaprovação:
Os cristãos ebionitas do séc.II classificavam-no como apóstata da Lei
A literatura judaico-cristã das Pseudo-Clementinas repete a qualificação de «adversário, inimigo, impostor»
Renan acusa-o de responsável pelos desastres da teologia cristã
Nietzsche: é o protótipo de um des-evangelista

Ambos os campos reduzem e escondem a efectiva dimensão histórica do personagem. São etiquetas, formulações globalizantes que não chegam a transmitir o perfil real de um personagem certamente complexo como aquele de um fariseu que acabou por acreditar em Jesus Cristo. O dado mais seguro e concreto de que podemos partir, porque apoiado nos factos biográficos, é que viveu um verdadeiro paradoxo: de inicial adversário do cristianismo, torna-se ele próprio perseguido por ser cristão.

Paulo face a Jesus, à Igreja primitiva e ao Judaísmo

Quem quer fazer de Paulo o segundo fundador do cristianismo esquece um facto histórico elementar: que entre Jesus e Paulo existe no meio a comunidade cristã (aquela de Jerusalém, mas também outras na Galileia).

Por um lado, Paulo cita pouquíssimos ditos de Jesus (aqueles seguros são apenas três: 1 Cor 7,10 («Aos que já estão casados, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se separe do marido»); 9,14 («Assim, ordenou também o Senhor, que aqueles que anunciam o Evangelho vivam do Evangelho»); 11,23-25 («Com efeito, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus na noite em que era entregue, tomou pãoe, tendo dado graças, partiu-o e disse: «Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim». Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: «Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim.»»)) e nestes casos chama-o sempre «Senhor». Por outro lado, e sobretudo, reconhece explicitamente o seu débito para com a comunidade que o precedeu. Vê-se isso de várias formas:
· A preocupação pessoal de manter laços estratégicos com aqueles que aderiram a Cristo antes dele (Gal 2,2.9 «Mas subi devido a uma revelação. E pus à apreciação deles - e, em privado, à dos mais considerados - o Evangelho que prego entre os gentios, não esteja eu a correr ou tenha corrido em vão»)
· A recordação do credo comum (1 Cor 15,3-5: «Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze»)
· O uso de textos que a crítica literária reconduz com toda a possibilidade a ambientes judeo-cristãos pré-existentes (Rm 1,3b-4ª «nascido da descendência de David segundo a carne, constituído Filho de Deus em poder, segundo o Espírito santificador pela ressurreição de entre os mortos, Jesus Cristo Senhor nosso»; Fil 2,6-11).

Decisivo para ele foi o triângulo formado por Jerusalém- Damasco- Antioquia. Nos Actos nós percebemos que a Igreja de Jerusalém tem um papel moderador face à emergência de grupos e sensibilidades (Estêvão – Act 6-7 -, por exemplo, critica o templo e a lei mosaica. Paradoxalmente está aqui em embrião o repensamento da mensagem cristã que Paulo vai depois levar a cabo).

É preciso reconhecer que a teologia de Paulo não só não despontou como um fungo no interior do cristianismo das origens, como não permanece num esplêndido isolamento. Paulo teve em vida uma série de colaboradores que condividiram com ele o seu destino e o seu pensamento (Barnabé, Timóteo, Tito, Epafras, Epafrodito, Títico, Clemente, Aquila; Lídia, Priscila, Febe, Maria, Júnia, Trifena, Trifosa, Pérsides, Júlia), e depois originou uma sucessiva tradição teológica atestada nas chamadas deutero-paulinas (2Ts, Col, ef, 1-2Tm, Tt) e nos autores posteriores (Inácio de Antioquia, Marcião, Justino, Ireneu de Lião).

Quem quisesse ver em Paulo um apóstata deveria recordar-se que ele não relegou nunca a sua matriz judaica. E não só se declara «circuncidado ao oitavo dia, sou da raça de Israel, da tribo de Benjamim, um hebreu descendente de hebreus; no que toca à Lei, fui fariseu» (Fil 3,5), da «estirpe de Abraão» (2 Cor 11,22), mas chega a desejar ser «amaldiçoado, ser eu próprio separado de Cristo, pelo bem dos meus irmãos, os da minha raça, segundo a carne» (Rm 9,3), aos quais reconhece todas as particularidades distintivas: «Eles são os israelitas, a quem pertence a adopção filial, a glória, as alianças, a lei, o culto, as promessas. A eles pertencem os patriarcas e é deles que descende Cristo, segundo a carne» (Rm 9,4-5). Paulo condivide as mesmas Sagradas Escrituras (Rm 1,2), a mesma Fé monoteísta do Shemá (1 Cor 8,6), a mesma esperança do futuro «Dia do Senhor» (1 Cor 5,5; 1 Ts 5,2), a mesma concepção de fundo sobre Israel como povo eleito e amado de Deus, que o chamou «sem arrepender-se» (Rm 11,29). Ele continuaria certamente a definir-se «um judeu», ainda que «um judeu em Cristo».

Permanece o facto de Paulo ter sido incompreendido e fortemente atacado. Isto verificou-se por parte da Fé judaica (2 Cor 11,24: «Cinco vezes recebi dos Judeus os quarenta açoites menos um»). Em vários lugares Paulo foi alvo de contestação: Damasco, Antioquia da Pisídia, Tessalónica, Bereia, Corinto, Jerusalém.
Mas a oposição foi também mantida pelos judeo-cristãos, que sustinham outra hermenêutica do Evangelho. Ele chama-os, ironicamente, «super-apóstolos» (2 Cor 11,4-5.22-26) ou «intrusos, falsos irmãos, que furtivamente se intrometeram a espiar a nossa liberdade, aquela que temos em Cristo Jesus, a fim de nos reduzirem à escravidão» (Gal 2,4-5). Surge a pergunta: porque foi Paulo tão hostilizado? Aqui se coloca o complexo problema histórico e teológico do chamado «judeo-cristianismo», isto é, aquele sector do primeiro cristianismo de proveniência judaica que aceitou a Fé em Jesus Cristo mas a combinou com uma persistente observância da Torah ou de parte dessa.

Havia vários grupos dentre os judeo-cristãos (4 grupos, como vimos)

Um ponto nodal

Uma coisa é certa: Paulo repensa de forma pessoal e original o Evangelho cristão. Ele não se contenta com o dado recebido por tradição, mas reinterpreta-o com o seu génio próprio. De facto, como o diz um pouco enfaticamente Albert Scheweitzer, ele assegurou para sempre no cristianismo o direito de pensar! Paulo, mais do que qualquer outro, repensou a fundo a Fé cristã.

A questão é saber se a teologia de Paulo tem um centro e qual é ele. Enquanto a tese luterana clássica sustém a centralidade da justificação pela fé (Bultmann, Käsemann), outros dentre o protestantismo apontam para a união mística com Cristo (Wrede, Schweitzer, E.P. Sanders); outros sublinham ainda o valor da teologia da cruz (U. Wilckens, J. Becker) ou a dimensão apocalíptica da revelação de Deus em Cristo (J.C. Beker), ou a constante tensão para horizontes universalistas (Stendahl; Watson, J.D.G. Dunn), ou evidenciam o próprio Cristo como o factor objectivo e despoletador de toda a teologia do Paulo cristão (Cerfaux, Schnackenburg). Esta última escolha merece a nossa atençaõ, pois para Paulo é precisamente a descoberta da figura de Cristo e da sua valência soteriológica a constituir a causa, a origem e a fonte do seu ousado discuros sobre a Fé, sobre a justificação, a participação mística, o acontecimento cruz-ressurreição, e o destino universal do Evangelho.

Sem Cristo, Paulo continuaria a falar da fé em Deus, da sua revelação na história humana (especialmente de Israel), do messianismo, da Torah, da salvação… Mas sobre todos estes conceitos operou-se uma reconfiguração, reelaborados e inscritos numa síntese nova, pois cada um deles é caracterizado por uma semântica diferente da original. E a causa principal da nova percepção é Jesus Cristo, o qual redefine a fé em Deus, a história da salvação, etc.
Por isso é claro que a novidade do pensamento paulino está associada à determinante experiência que ele realiza sobre a estrada de Damasco, à qual acrescerá naturalmente um desenvolvimento do seu pensamento, condicionado aqui e ali por situações das Igrejas destinatárias e das suas tomadas de posição face a elas.
Hermenêutica soteriológica e universalista da figura de Jesus, o Cristo

Quem é Jesus Cristo segundo Paulo? A posição daqueles que pretendem fazer de Paulo o fundador do cristianismo, porquanto teria transformado o Jesus palestinense em redentor, esbarra com dois factos incontornáveis:
· Já antes de Paulo Jesus era confessado ter morrido pelos nossos pecados (1 Cor 15,3: citação de uma confissão de fé anterior ao apóstolo)
· Paulo não define nunca Jesus como redentor (embora empregue o substantivo abstracto redenção, mas muito raramente – Rm 3,24; 8,23; 1 Cor 1,30 -, sabendo bem que ele não tem origem cultual, mas profana e social – o resgate de escravos ou prisioneiros) nem como salvador (apenas uma vez aplica a Jesus o termo sóter – Fil 3,20 – e fá-lo em referência não à obra histórica de Jesus, mas à sua vinda escatológica). Pelo contrário, a fórmula cultual acerca da morte pelos pecados adquire nele um acento personalista com a dicção «por todos, por vós, por nós, por mim, pelos ímpios» (2 Cor 5,14s; 1 Cor 11,24; 1 Ts 5,10; Gal 2,20; Rm 5,6).

O apóstolo condivide com o cristianismo primitivo, que lhe é anterior, a fé escandalosa que define Messias (Christòs) e por Senhor (Kyrios) não um soberano forte e glorioso, mas um obscuro galileu condenado à ignomínia da cruz, cuja glória em termos paradoxais se retém que lhe provenha apenas do facto de ter dado a vida pelos outros e de ter sido, precisamente por este motivo, inesperadamente ressuscitado dos mortos pelo próprio Deus. Pelo menos em grande parte, os primeiros cristãos retinham que Jesus tivesse morrido pelos nossos pecados (1 Cor 15,3) e que com a Ressurreição foi constituído Filho de Deus poderoso (Rm 1,4ª).

Além disso algumas primeiras formas de missão (judeo-cristãs no interior de Israel) terão existido antes de Paulo.

O judeu Paulo condivide com outros judeus uma fé sobre um certo judeu, certamente atípico, mas pertencente culturalmente a uma não-brilhante região palestinense daquele tempo. Certamente, do ponto de vista historiográfico, fica-se maravilhados que em pouquíssimos anos acerca de um certo galileu chamado Jesus se tenham podido dizer coisas do género!

De seu, Paulo sustém que este Jesus (Cristo e Senhor) seja o iniciador de uma nova estação da história e de uma nova identidade antropológica de contornos universalistas, eventualmente semelhante não a um rei como David, não a um profeta como Isaías, não a um legislador como Moisés, mas àquele que é anterior a todos estes: a Adão, primogénito da inteira humanidade (1 Cor 15,21-22.45-47; Rm 5,12-21). Por isso, com Cristo tem lugar uma nova criação (2 Cor 5,17; Gal 6,15).

Certamente Paulo não tem uma ideia gnóstica sobre Jesus, como se ele fosse um anjo que atravessou este mundo caduco. Ele sabe bem que Cristo descende de Abraão (Gal 3,16) e que foi precisamente o povo judeu a gerar o Cristo segundo a carne (Rm 9,4).

Mas os horizontes deste judeu singular que é Paulo vão muito além de Israel: a ele interessa-lhe o homem como tal, cada homem, prescindindo de qualquer distinção, ou pior qualquer contraposição cultural e religiosa. Confessa-o aos Romanos: «Tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes eu sou devedor» (Rm 1,14); e aos Coríntos admite: «Fiz-me judeu com os judeus, para ganhar os judeus; com os que estão sujeitos à Lei, comportei-me como se estivesse sujeito à Lei - embora não estivesse sob a Lei - para ganhar os que estão sujeitos à Lei; com os que vivem sem a Lei, fiz-me como um sem Lei - embora eu não viva sem a lei de Deus porque tenho a lei de Cristo - para ganhar os que vivem sem a Lei. Fiz-me fraco com os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo. E tudo faço por causa do Evangelho, para dele me tornar participante» (1 Cor 9,20-23).

Se tem uma preferência é pelos gentios, aqueles que eram excluídos da consciência de Israel acerca da eleição. «É a vós, os gentios, que eu digo isto: exactamente como Apóstolo dos gentios que sou, enalteço este meu ministério, para ver se provoco o ciúme dos que são da minha carne e salvo alguns deles» (Rm 11,13-14). Nesta frase não se pode ver a sombra do anti-semitismo pois imediatamente a seguir Paulo chama a Israel «santas primícias e raízes», «boa oliveira» (Rm 11,16-24).

Que significava Cristo para Paulo? A nível de superfície podemos dizer que a seus olhos representava a superação da divisão entre judeus e gentios: não no sentido da eliminação da peculiaridade de Israel, mas no sentido da equiparação dos segundos aos primeiros. Toda a actividade missionária de Paulo, determinada pela sua adesão a Jesus, consiste precisamente nisto: em eliminar a distância que separa os Gentios dos Judeus, a fim de incluir os outros, os diversos, os distantes, na paridade do mesmo mistério de salvação.

O cristão Paulo retém que com a oferta total da sua vida feita por Cristo e com a sua Ressurreição, a graça de Deus não passa mais através de mandamentos e preceitos, e supera a grande ideia de libertação (nacional e política) conexa com o antigo êxodo. Esta constituía o fundamento da Torah, mas agora o fundamento é Cristo. O homem pode agora ser justo não em base a um comportamento moral, mas na simples aceitação pela fé do evento da morte e ressurreição válido para todos os homens e para cada um. A lei mosaica deixa de ser o critério distintivo da revelação de Deus e da identidade religiosa do homem.
A batalha de Paulo é em favor da inclusão.

Cristo e/ou a Torah

O evangelho e a missão de Paulo explicam-se por condições cristológicas e judaicas. Mas as cristológicas são as decisivas: elas não são um cumprimento de um mandato do Jesus terreno, visto Paulo não citar nunca esse mandamento, mas são consequência da fé no Cristo crucificado e ressuscitado, que supera toda a revelação anterior e coloca todos os homens num horizonte de paridade.

Paulo cultiva duas atitudes aparentemente inconciliáveis. Continua a considerar-se pessoalmente parte de Israel, suportando várias oposições que vêm daí e mantendo firme a típica fé judaica na salvação escatológica daquele povo. Por outro lado, considera que seja Cristo e não a Torah a configurar a nova comunidade dos eleitos de Deus. Nisto distingue-se de outros sectores do cristianismo primitivo, que retinham que Cristo e a Torah fossem mutuamente compatíveis. Para Paulo, Cristo é «o termo da Lei» (Rm 10,4) e , por isso, «se alguém está em Cristo, é uma nova criação. O que era antigo passou; eis que surgiram coisas novas» (2 Cor 5,17). E, deste modo, considerando-se um judeu em Cristo, ele acabou por alienar as simpatias do seu povo, porque aceitou identificar Jesus com o Cristo. Toda a sua epistolografia denota o impacto da figura de Cristo. Gal 1,8: «até mesmo se nós ou um anjo do céu vos anunciar como Evangelho o contrário daquilo que vos anunciámos, seja anátema!»

Paulo representa a confirmação que se tinha iniciado uma nova hermenêutica do anúncio cristão, cujo fascínio e fecundidade não cessaram e resiste à domesticação.

Sem comentários: