sábado, maio 31

já lestes São Paulo?

Numa daquelas frases inesquecíveis que cunhou, Paulo de Tarso escreve: «quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12,10). E a nossa pergunta vem imediata: “que homem enigmático é este que revolve a ordem esperada das coisas, elogiando a fragilidade em vez da força?”. A verdade é que quem pretenda tornar-se leitor de Paulo tem de adequar o ouvido e o coração a uma linguagem paradoxal, que nos desconcerta, nos comove e nos forma. A gramática que ele utiliza (isto é, o seu modo de pensar e de dizer) estilhaça as convenções. A tradição judaica olhou para a pregação dele com suspeita e escândalo. Os gregos e os romanos, habituados à sofisticação do pensamento e ao poder da retórica, menosprezaram o seu discurso que lhes parecia uma loucura. E, mesmo hoje, passados dois mil anos do seu nascimento, o seu discurso não deixa de ressoar profético e desafiador. Esperemos que o Jubileu de São Paulo constitua para muitos cristãos e comunidades uma oportunidade de graça para (re)descobrir esse tesouro que é a literatura paulina.

Esse enigma chamado Paulo

Um consenso muito amplo, que reúne as mais antigas tradições cristãs e os recentes dados das ciências hermenêuticas e históricas, afirma claramente que as Cartas de Paulo são os primeiros escritos cristãos que chegaram até nós. Esperar-se-ia que a nossa cultura, que vibra com a arqueologia das origens e o retorno às fontes, nos tivesse impelido para uma apropriação apaixonada e competente desse conjunto de textos fundamentais da identidade crente. Há que reconhecer, porém, que o grande Paulo permanece um autor desconhecido, mal amado e distante, mesmo para a maioria dos cristãos.
O uso litúrgico aproxima-nos, evidentemente, dos seus textos, lidos e relidos ao longo do ano. Mas a verdade é que, no contexto litúrgico, lêem-se trechos seleccionados ou sublinham-se frases teológicas, demasiado densas para o desbravar, necessariamente contido, de uma celebração. E, claro, os detalhes concretos que conferem unidade a cada carta são frequentemente deixados de parte. Como dizia o escritor Oscar Wilde, acerca dos limites do nosso conhecimento das Escrituras, «ouvimos lê-las demasiadas vezes, e mal demais, e toda a repetição é anti-espiritual». Mas também é verdade que permanece inquebrável e sempre actual a certeza de que a vitalidade da Igreja não se constrói sem o recurso ao pensamento de Paulo. Tornou-se uma espécie de slogan dizer que “Sempre que a Igreja é relevante, ela é Paulina”, e há aí muito de razão. Basta pensar na fecunda redescoberta, cheia de consequências, que a Teologia fez de São Paulo no século XX e que deixou uma marca decisiva no Concílio Vaticano II. Por isso, mesmo se Paulo não é ainda conhecido de maneira sistemática pelos cristãos, a verdade é que as suas palavras e imagens dão-nos já o melhor retrato daquilo que é o mistério da Igreja e da própria existência cristã.

A reactivação dos escritos de Paulo

Para chegar a Paulo é preciso atravessar uma floresta de ideias-feitas e preconceitos. Paulo é, como hoje se diz, um autor com “má imprensa”. É corrente ouvir que ele é um legalista, que perpetuou modelos patriarcais que desvalorizavam as mulheres, que tem uma fobia às questões do corpo e da sexualidade, que é um conservador em termos sociais, etc, etc. Já no séc.XIX, Ernest Renan escrevia num best-seller sobre Jesus: «O verdadeiro cristianismo, aquele que perdurará para sempre, vem dos Evangelhos e não das 13 cartas de Paulo. Paulo é um perigo, um escolho… Paulo é a causa dos principais defeitos da teologia cristã». E essa opinião deixou sementes. Muitas vezes se vê opor-se a linguagem de Jesus, parabólica e aberta, ao discurso teológico e pretensamente estreito de Paulo, num conflito de interpretações superficial e descabido.
Mas também se dá um facto paradoxal: multiplicam-se hoje os ensaios e leituras sobre Paulo e as suas Cartas, por parte de importantes nomes do pensamento contemporâneo. Se é verdade que, de Santo Agostinho a Lutero, de Karl Barth ao nosso Teixeira de Pascoaes, na teologia, na filosofia, nas expressões iconográficas ou na literatura, a pessoa e o pensamento de Paulo nunca deixaram de ser referenciais, também é verdade a surpreendente efervescência do panorama actual. O filósofo Alain Badiou publicou, no início dos anos 90, uma reflexão entusiasta sobre a figura de Paulo a que intitulou “São Paulo. A fundação do Universalismo”. A universalidade que Paulo prega não vem do que é já inerente e consubstancial ao indivíduo (a sua pertença a uma família, a una nação, a uma língua… traços que são necessariamente particularistas), mas de um Evento. O que produz a verdade sobre o homem e sobre todos os homens é agora um Evento e uma Proclamação que contrastam com a multiplicidade dos particularismos: a Morte e a Ressurreição de Jesus. A verdadeira universalidade constrói-se no compromisso com esse acontecimento que para Paulo é a chave de toda a história.
Em 1998, o filósofo italiano Giorgio Agamben orientou um seminário no Colégio internacional de filosofia, em Paris, onde escolheu comentar a Carta de São Paulo aos Romanos, porque, segundo ele, a hora da plena legibilidade dos escritos de Paulo finalmente chegou. A tese de Agamben é que, para Paulo, Cristo, sendo a finalidade da Lei, também representa o seu fim (término). A consequência é que o tempo messiânico pode deslocar os referentes do mundo: o que até aqui era a norma ou o quadro social deixa de valer só por si. O tempo messiânico é um estado de excepção que permite a transfiguração do mundo, a sua revisão.
Ainda mais recentemente, o filósofo esloveno Slavoj Žižek tem tornado a Paulo. Ele classifica o tempo actual como de “Crença suspensa”, pois a fé passou a ser vista como um segredo pessoal e quase obsceno, do qual é incorrecto falar. E contudo, escreve Žižek, a pergunta corriqueira, “és ou não um verdadeiro crente?”, tornou-se «talvez mais do que nunca» uma questão fundamental. Fascina-o em Paulo o seguinte: «Quando lemos as epístolas de Paulo, não podemos deixar de notar a sua indiferença relativamente a Jesus como pessoa histórica. Paulo desinteressa-se quase por completo dos actos particulares de Jesus, dos seus ensinamentos, das suas parábolas… Nos seus escritos, Paulo nunca se situa no campo da hermenêutica, nunca busca o sentido profundo desta ou daquela parábola ou acto de Jesus. O que lhe interessa não é Jesus como figura histórica, mas apenas a sua morte na cruz e a sua ressurreição de entre os mortos». A Paulo, diz o filósofo, interessa o cristianismo como ruptura, processo, tomada de posição.
Ainda relativamente a Paulo, um elemento curioso é o interesse que tem suscitado entre estudiosos judaicos. Jacob Taubes, que se define como um “paulino não-cristão”, talvez seja o autor da obra mais importante. Este rabino e filósofo alemão defende que Paulo operou uma revolucionária alteração dos valores em que o nosso mundo se funda. E poderíamos ainda citar, no universo judaico, as obras de Daniel Boyarin ou S. Ben-Chorin.
Uma coisa parece certa: passados dois mil anos do seu nascimento, Paulo confirma e adquire uma importância e um estatuto cultural do maior relevo. Este interesse deve representar para os cristãos uma responsabilidade, no sentido de não deixarem de frequentar Paulo e de se confrontar com ele.

Quem é Paulo de Tarso?

Não há, nem de longe, outra figura do cristianismo primitivo sobre quem saibamos tanto. E se compararmos com grande parte dos personagens que a Antiguidade consagrou, pensemos em Hesíodo, Homero ou Sócrates, o que podemos concluir é que a biografia do Apóstolo está muito melhor sustentada. Paulo é o homem das encruzilhadas. Viveu e operou em diferentes mundos, línguas e culturas. Desenvolveu uma presença, mais esporádica ou mais continuada, em centros urbanos importantes e distantes como Antioquia na Síria, Éfeso na Ásia Menor, Filipos, Corinto e Atenas na Grécia, culminando a sua obra em Roma, Itália. Um verdadeiro corre-mundos da Época Antiga! Em todos eles testemunhou, de maneira vibrante, a universalidade da salvação inaugurada por Cristo.
As fontes para a reconstrução biográfica de Paulo permanecem essencialmente duas: as cartas paulinas e os Actos dos Apóstolos. As Cartas de Paulo têm uma declarada finalidade pastoral, mas é verdade que os traços autobiográficos abundam, pois o Apóstolo compromete-se existencialmente com a sua pregação. Alguns preciosos versículos da 1Tes (1,1-10); o capítulo 16 da 1 Coríntios; o arranque da 2 Cor, bem como o núcleo constituído pelos capítulos 10 a 13; os capítulos 1 e 2 da Carta aos Gálatas; os capítulos 15 e 16 da importante Epístola aos Romanos; e alguns trechos de Filipenses: é verdade que este conjunto de passagens não bastaria, por si só, para narrar-nos a vida de Paulo, mas transmitem-nos em primeira pessoa a consciência apaixonada que ele tem de si próprio e da sua missão.
Que ficamos a saber da vida de Paulo por aí? Que Paulo pertence à tribo de Benjamim (Filp 3,5; Rom 11,1); foi Fariseu (Filp 3,5); viu a Cristo; considera-se o último testemunha da ressurreição (1Cor 15,8); Pouco depois da sua conversão, Paulo prega na Arábia (Gal 1,17), e sobe a Jerusalém somente três anos após se ter tornado discípulo de Jesus. Até lá ele não conhecido das Igrejas da Judeia. Reencontra Pedro e Tiago em Jerusalém (Gal 1,18-24). Sobe uma segunda vez a Jerusalém e reencontra de novo Pedro e Tiago, assim como João (Gal 2,1-10). Paulo estreita os laços com a comunidade de Jerusalém organizando em favor dela uma colecta (2 Cor 8,9). E manifesta a intenção de passar por Roma para se dirigir a Espanha.
Os Actos dos Apóstolos, de um ponto de vista estritamente biográfico, não deixam de ser lacónicos, pois não era esse o objectivo de Lucas, mais interessado em mostrar como o Evangelho, na força do Espírito, se move de Jerusalém até aos confins da terra (Act 1,8). No entanto, há traços da vida de Paulo que nos aparecem referidos apenas ali: Paulo é natural de Tarso da Cilícia (Act 21,39; 22,3) e é cidadão desta cidade (Act 21,39). De nascimento, Paulo é cidadão romano (Act 22,25-29). O seu nome judeu é Saul (Act 7,58 e 13,9). Ele estuda em Jerusalém aos pés de Gamaliel (Act 22,3). Paulo foi perseguidor em Jerusalém e assistiu à lapidação de Estêvão (Act 7,58). Foi baptizado por Ananias em Damasco (Act 9,17). De Damasco Paulo vem directamente em Jerusalém, e depois parte de lá para Tarso (Act 9, 26-30). Paulo é conduzido por Barnabé à Antioquia da Síria (Act 11,25), e é profeta e Doutor da Igreja de Antioquia (Act 13,1). Realiza a sua primeira viagem missionária na Ásia Menor (Act 13,1 a 14,28). Participa na Assembleia de Jerusalém entre a primeira e a segunda viagem missionária (Act 15,1-35). A segunda viagem missionária tem como plataforma Corinto (Act 15,36 e 18,22). A Terceira viagem missionária fixa a sua base em Éfeso (Act 18,23 e 21,16). Paulo é feito prisioneiro em Jerusalém, é conduzido a Cesareia e acompanhado a julgamento até Roma (Act 21,17 e 28,31).
Tanto Gal 1,17 como Act 9,3; 22,6 e 26,12 coincidem em que Damasco foi para Paulo o princípio dos princípios: experimentou a revelação do Senhor Ressuscitado, viu a Sua luz, e começou aí a sua conversão e vocação. É curioso que as Escrituras não referem que Paulo ia de cavalo ou caiu dele. A imaginação e a iconografia ocidentais é que introduziram esse elemento, pois a melhor maneira de representar a reviravolta de Paulo pareceu ser a de uma queda hípica aparatosa. Que a transformação foi grande, isso não há dúvida.
Sobre o seu fim, a morte em Roma, temos algumas referências esparsas da Antiguidade cristã. Eusébio cita o testemunho do bispo de Corinto, segundo o qual Pedro e Paulo teriam sido martirizados. Tertuliano indica que a execução foi semelhante à de João Baptista, ou seja, decapitação. O ano mais provável parece ser o de 67, pela simples razão de que essa data coincide com o fim da perseguição de Nero, mas pode ter acontecido entre 64 e 67.

Reconhecer Paulo

Quando Paulo morreu, o primeiro Evangelho, aquele de Marcos, provavelmente não tinha sido ainda escrito. O que faz dele o primeiro autor cristão. E não apenas isso. Nós possuímos de Paulo várias cartas, e é possível seguir a evolução do seu pensamento nos quinze anos que dura a sua actividade epistolar. No Novo Testamento é um caso único. Em década e meia de actividade intensa e de reflexão, o seu pensamento evolui, as motivações amadurecem, alteram-se os destinatários e as situações que ele enfrenta. A evolução do seu pensamento liga-se também a uma evolução da forma literária na qual ele se exprime. Se os primeiros escritos de Paulo são cartas simples, sem grande elaboração, o apóstolo passa a conhecer os recursos da oficina literária e a manejá-los, tornando-se um verdadeiro escritor.
Esta evolução é ainda mais interessante – e é certamente um factor que confere ao pensamento de Paulo um potencial de sedução muito forte - se tivermos em conta que o mundo paulino tem um centro que permanece imutável: a ressurreição de Jesus. «Se Cristo não ressuscitou a nossa pregação é vazia, e vazia também é a vossa fé» (1 Cor 15,12). Um centro fixo num pensamento móvel – assim se poderia descrever em grande parte o génio do apóstolo que inaugura o cânone cristão.
Percorrendo a sua biografia e o seu pensamento podemos definir Paulo com a com o adjectivo que os antigos gregos utilizavam para descrever o sábio. O sábio é um methórios, “aquele que está sobre a fronteira”. De facto, permanecendo judeu, ele foi também o cidadão de Roma e do mundo, com todas as condições para efectuar uma das operações mais criativas, geniais e complexas: a acção de tradução da mensagem cristã na cultura corrente do seu tempo. Paulo situa-se na dependência do acontecimento pascal protagonizado por Jesus de Nazareth e coloca-se, por inteiro, ao serviço do anúncio da novidade cristã. Mas fá-lo numa língua nova, recorre a novos conceitos e imagens, ousa o contacto com novos espaços. O cristianismo no tempo de Jesus era sociologicamente uma realidade campesina. Com Paulo ganhou a amplidão que o próprio Jesus prometera: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28,19-20). Tornou-se uma realidade urbana, cosmopolita, sem fronteiras.
E onde o anúncio do cristianismo chegava, exercia o seu poder transformador. No mundo das cidades greco-romanas onde os homens são desiguais por nascimento e onde os grupos sociais parecem separados por fronteiras raramente ultrapassáveis, a teologia inclusiva do cristianismo escreverá a diferença. O cristianismo podia oferecer a cada um uma nova consciência de si e a solidariedade real e simbólica de uma pertença comum. O Baptismo, quer dizer, a decisão de colocar a sua existência sob a senhoria de Cristo crucificado, pressupõe uma escolha pessoal e a aceitação de um novo caminho (cf. 1Cor 7). Cada baptizado reforça a sua singularidade por uma participação pessoal no mistério de Cristo. Doravante, «não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3,28). E falar desta nova realidade é falar do que está no cerne da experiência cristã.

(jtm)

Sem comentários: