No meu post anterior, em que analisava a comunidade de Filipos do ponto de vista social, disse que era possível que a Epístola de Paulo que lhe é dirigida estivesse composta, tal como a conhecemos, por 2 ou 3 cartas originalmente separadas; esta é de facto a posição sustentada nas obras assinaladas na bibliografia desse post, excepto na de Barbaglio; também a introdução da Bíblia de Jerusalém é dessa opinião. Há quem diga serem esses fragmentos todos de Paulo, compilados mais tarde por outro editor; outros afirmam que Paulo foi escrevendo a carta em etapas sucessivas, acabando por misturar temas diferentes num todo não coerente, que enviou aos filipenses na primeira oportunidade que teve; outros dizem que contém acrescentos de discípulos do Apóstolo. Não satisfeito com isso, pedi a opinião do professor, que me indicou a tese de Bianchini, na qual acabei por me apoiar.
Recorri também a outras duas obras recentes, mas a de Edart veio a revelar-se favorável à ideia de boa parte do cap. 3 ser um acrescento de um editor que não Paulo, possivelmente o evangelista Lucas (defende até que este corrigiu o hino cristológico do cap. 2). Eu prefiro a ideia de integridade da epístola, que tanto Aletti como Bianchini sustentam, porque, além de à primeira vista não ter sido induzido a pensar numa compilação, fiquei satisfeito por estes dois autores convergirem no essencial, em obras bem estruturadas e que extraem conclusões teológicas muito positivas a partir da análise retórica que fazem. Analisando o modelo epistolar antigo, concluem que a haver junção de cartas, os editores não se preocupavam com o costurá-las coerentemente, mas apenas em preservá-las a todas no pouco papiro disponível.
Bianchini, depois de expor as propostas de dispositio favoráveis à compilação e as favoráveis à integridade da carta (estas de Rolland, Barbaglio, Bittasi e de um estudo antigo de Aletti), apresenta a sua própria proposta, que agora cito, com alguns acrescentos retirados de Aletti, do próprio Edart ou da minha autoria:
· Praescriptum (1,1-2):
- superscriptio: «Paulo e Timóteo, servos de Cristo Jesus»;
- adscriptio: «todos os santos em Cristo Jesus que estão em Filipos, com bispos e diáconos»;
- salutio: «graça a vós e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo»;
- O facto de nesta carta os mitentes se apresentarem como servos é significativo do que virá depois, em que Cristo será chamado servo, e todos serão chamados à imitação d’Ele e, n’Ele, à imitação de Paulo e Timóteo.
· Prólogo: agradecimento inicial (1,3-11):
- aqui Paulo faz a típica acção de graças, iniciando com o verbo Eucharistô; desta vez a captatio benevolentiae que faz é extremamente exuberante, dado o amor que nutre pela comunidade, e a ajuda que desde o início esta lhe prestou. Preparam-se temas a desenvolver ao longo da epístola, tendo ao centro a comunhão e a caridade.
· Notícias autobiográficas (1,12-26) –sobre a situação de Paulo e seus propósitos;
- pode ser também considerada uma narratio, descrevendo a atitude de Paulo face à perseguição.
· Exortações gerais a viver conforme o Evangelho (1,27-30) – ligando-se à situação precedente e preparando as exortações seguintes: I. unidade (v. 27) e II. Resistir aos adversários (v. 28):
- O imperativo inicial marca a mudança: da recordação dos acontecimentos passa-se a uma exortação a levar uma vida digna do Evangelho, pondo em causa toda a vanglória e inveja que existiriam na comunidade.
· I. O exemplo de Cristo: exortações baseadas sobre o elogio de Cristo (2,1-18) para pensar a mesma coisa e buscar a unidade:
A - 2,1-5: exortação
B - 2,6-11: exemplo de Cristo (hino à Kenose)
A’ - 2,12-18: retomar da exortação
- Edart considera o hino como uma probatio em que Paulo tenta mostrar ao auditório o que deve ser a vida dos cristãos a partir da vida do próprio Cristo, que aceitou a debilidade da condição humana e a obediência até à morte de cruz, sendo depois exaltado por Deus.
· Notícias autobiográficas e acerca de Timóteo e Epafrodito (2,19-30):
- Alguns consideram que esta parte deveria pertencer a um bilhete anterior, mas é mais credível que sirva como outra prova do amor até ao esquecimento de si e ao arriscar a própria vida, atitude que Paulo quer ver nos filipenses. É uma digressão acerca destes dois personagens cujo comportamento ilustra a exortação do Apóstolo.
· O exemplo de Paulo: exortações baseadas sobre a periautologίa [auto-elogio] de Paulo (3,1-4,1); Resistir aos adversários, em duas etapas:
- Exortação a pensar correctamente:
A - 3,2: exortação a prestar atenção
B - 3,3 e 3,4-14: exemplos (auto-elogio de Paulo)
A’ - 3,15-16: retomar da exortação
- Alargamento da exortação: imitar os líderes:
A - 3,17: exortação
B - 3,18-21 (contraste: eles/nós)
A’ - 4,1: retomar generalizante da exortação
- A tese de Bianchini, centrada nesta perícope, por muitos considerada estranha ao resto da carta, esclarece a insistência de Paulo no seu próprio «eu», e na imitação de si a que convida os filipenses; tendo encontrado a sua nova identidade em Cristo, o Apóstolo fala de si como de um outro e propõe-se como modelo somente para que a comunidade reproduza o seu próprio itinerário de fé; é uma exaltação de si mas feita no interesse de quem lê e ouve, e para louvar o próprio Senhor, e não no interesse de quem escreve, por isso é legítima, sendo típica do epistolário da antiguidade. A partir da teologia da cruz (e da ressurreição) esboçada no primeiro e maior exemplo, o de Jesus (hino do cap. 2), Paulo pode gloriar-se, mas gloriar-se em Cristo e não na carne; Deus cumpre nele uma obra de configuração progressiva à imagem de Jesus, repetindo o seu itinerário de morte e ressurreição, e é isto que Paulo deseja que aconteça também com os seus interlocutores.
· Exortações particulares (4,2-9):
- Destaca-se um apelo a Evódia e Síntique, mulheres com responsabilidade na comunidade, a superarem as suas divergências, numa clara aplicação concreta do que Paulo dissera ao longo de toda a carta.
· Epílogo: agradecimento final com notícias autobiográficas (4,10-20):
- Alguns autores diziam não fazer sentido Paulo agradecer tão grande dom só no fim da carta, mas certamente para ele importava primeiro exortar os filipenses a uma conversão e um amor mais profundos, e só depois realçar aquilo que já tinham realizado (de resto, o elogio do prólogo já era de algum modo revelador do que viria agora).
· Postscriptum (4,21-23):
- Vê-se uma inclusão entre as duas partes iniciais e estas duas finais, com a nomeação dos santos, e o retomar, agora reforçado, do elogio já começado no prólogo.
Bibliografia
· Jean-Noël ALETTI, Saint Paul. Épitre aux Philippiens, Paris, J. Gabalda et Cie, Éditeurs, 2005 [Études Bibliques, nouvelle série nº 55].
· Francesco BIANCHINI, L’elogio di sé in Cristo. L’utilizzo della periautologίa nel contesto di Filippesi 3,1 – 4,1, Roma, Editrice Pontificio Istituto Biblico, 2006 [Analecta Biblica 164].
· Jean-Baptiste EDART, L’Épître aux Philippiens, Rhétorique et composition stylistique, Paris, J. Gabalda et Cie, Éditeurs, 2002 [Études Bibliques, nouvelle série nº 45].